segunda-feira, dezembro 31, 2012

Aparados da Serra: Abismos na Neblina (Artigo National Geographic Brasil)

A névoa densa oculta o fundo do cânion Fortaleza, na região gaúcha de Aparados da Serra. Em alguns trechos, este imenso degrau que liga o planalto ao litoral tem quase mil metros de desnível. Foto Luis Veiga - National Geographic Brasil - Ed. Dez 2012


Dado o meu grande interesse pelo tema e pela região, desde criança admirador e assíduo frequentador dos Aparados da Serra, me permito - excepcionalmente - transcrever na íntegra, dado ao seu valor didático e com todos os créditos, a matéria que segue publicada na edição brasileira da National Geographic Magazine.

Registro apenas que não há como comprovar-se quem foram os primeiros a realizar a travessia de cada um das dezenas e dezenas de cânions da região, especialmente porque já eram zona de caça dos indígenas que habitavam a região antes da chegada dos europeus no nosso continente, o que ocorre ainda hoje com os atuais habitantes, inclusive em áreas protegidas.


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EDIÇÃO 153/ DEZEMBRO DE 2012 (26/12/2012)

Edição brasileira Dez 2012


APARADOS NA SERRA: ABISMOS NA NEBLINA 

Para abrir um caminho entre a América espanhola e a portuguesa, os colonizadores tiveram de galgar as escarpas dos maiores cânions do Brasil

Por Luis Veiga 
Fonte: NATIONAL GEOGRAPHIC BRASIL 

Nos meses de verão, quando nuvens vindas do litoral conseguem romper os penhascos, surge a viração. O choque térmico da massa fria com o calor estacionado na altitude faz com que a névoa se acumule em colunas cada vez mais altas.

Vistas de longe, essas colunas parecem estar em rotação de cima para baixo; de dentro, elas são como uma noite branca, a ponto de impedir que se enxergue além de 2 metros de distância. A viração é uma neblina espessa, quase palpável, que alcança a borda do planalto mas não avança por causa da diferença de temperaturas.

Na região da serra Geral, entre o Rio Grande do Sul e Santa Catarina, ela é capaz de desnortear por completo o viajante desprevenido. Para escapar desse fenômeno climático assustador, explicam os moradores dali, só mesmo a cavalo. Um animal acostumado ao terreno acidentado, com uma sela confortável, forrada com pelego de ovelha. Sobre ela, um sujeito experiente e de boa prosa, um bornal com um farnel, um pala para se proteger da chuva e do vento e, se possível, dois ou três cachorros bons de faro. O vaqueano experiente não sai de casa sem seu facão e seus cães. Certa vez, eu cavalgava em campo aberto na companhia de um experiente vaqueano entre o cânion Monte Negro, no Rio Grande do Sul, e a região do rio Púlpito, em Santa Catarina. Com tempo bom, esse trajeto exige um dia de cavalgada. Mas, de repente, fomos surpreendidos por uma viração forte. Quase cego, perdi completamente o senso de orientação. Em um instante estávamos cavalgando sobre o campo; de repente, à beira de um penhasco; depois, dentro de um banhado. Apesar disso, meu guia e seus cães demonstravam tanta segurança nos rumos tomados que em nenhum momento me senti andando em círculos. A noite avançava quando enfim encontramos um trilho, que nos levou à sede de uma fazenda, onde pedimos pouso. No dia seguinte, o cavaleiro me conta que prefere nunca admitir que perdeu a direção. “Jamais se deve assustar o viajante”, diz. “Mais cedo ou mais tarde, iremos encontrar um caminho para casa.”

O rio Púlpito corta os campos cobertos de gelo. A cerração baixa prenuncia um dia quente, apesar da madrugada com temperaturas negativas. A borda do planalto está entre as regiões mais frias do país. Foto Luis Veiga - National Geographic Brasil - Ed. Dez 2012

Retornando de uma cavalgada de cinco dias, Verino Barbosa cruza o planalto em meio a uma viração. Este experiente vaqueano de Aparados não se intimida com cruzar em dia de neblina o território repleto de banhados. E garante: nunca perdeu o rumo nem atolou cavalo. Foto Luis Veiga - National Geographic Brasil - Ed. Dez 2012

No trecho mais extremo de sua topografia, o planalto Norte-Rio-Grandense, que cobre parte considerável da região Sul do Brasil, ganha altitude ao aproximar-se dos litorais gaúcho e catarinense. Então, de repente, acaba. Desaparece. Sua borda plana desnivela-se abruptamente para esculpir um imenso platô, entrecortado por uma sucessão majestosa de abismos, penhascos, grotas e fendas. Vistas de cima, as planuras altas da serra parecem ter sido aparadas a tesoura. De baixo, o observador tem a impressão de que os contrafortes são muralhas de uma gigantesca e intransponível fortaleza.

O rio Amola Faca, afluente do Araranguá, em Santa Catarina, despenca em uma garganta. Perto daqui antigos caminhos de tropa descem a serra e ainda são usados pela população local. Foto Luis Veiga - National Geographic Brasil - Ed. Dez 2012

As cores da flor-das-almas, típica dos campos do sul, forram o planalto no fim da primavera, enquanto uma tempestade se aproxima, anunciando para breve a mudança das estações. Foto Luis Veiga - National Geographic Brasil - Ed. Dez 2012

Esse imenso degrau de 250 quilômetros de extensão e paredões que chegam a quase mil metros de desnível é conhecido como Aparados da Serra. A dificuldade extrema para vencer as escarpas verticais, o frio implacável dos invernos e o isolamento brutal a que foram condenados os primeiros povoadores forjou um modo de vida peculiar, criou histórias, usos e costumes, lendas e mitos que sobrevivem até hoje, quase 300 anos depois do início de sua ocupação.

Antes de os conquistadores europeus chegarem a Aparados, a região era parte de um vasto território disputado por tribos de índios guaranis, coroados e botocudos, que rivalizavam no planalto, e os carijós, que dominavam a faixa litorânea a leste. Povos nômades perambulavam por todas as direções. Os botocudos, senhores das escarpas, transitavam serra abaixo em busca de peixes e mariscos que abundavam nas lagoas costeiras e retornavam à parte alta na entrada do outono para coletar pinhão e caçar.

Os primeiros estrangeiros que se aventuraram a estabelecer uma rota norte-sul, ou seja, um caminho que cruzasse todo o planalto, foram os missionários jesuítas espanhóis, guiados por índios guaranis, no fim do século 17. As trilhas indígenas partiam dos Campos das Missões, a oeste do Rio Grande do Sul, e seguiam em direção aos campos de Curitiba até chegar a Sorocaba, já perto de São Paulo. Hábeis comerciantes, os jesuítas tinham como objetivo o contrabando de muares trazidos de Córdoba, na Argentina. As longas travessias em terras brasileiras justificavam- se pela elevada soma obtida na venda dos animais. A coroa portuguesa fazia vista grossa à prática, pois não mantinha relações comerciais com a Espanha e carecia de transporte de carga.

Não tardou, porém, para que o rei D. João V ordenasse esforços a favor da abertura de um caminho terrestre regular que ligasse a província de São Paulo à vila de Laguna e à Colônia do Santíssimo Sacramento, nas margens do rio da Prata. Coube a Francisco de Souza Faria, sargento-mor da cavalaria portuguesa, a árdua tarefa de abrir a estrada, que precisaria superar as escarpas de Aparados da Serra para marcar uma ligação entre a planície litorânea e a borda do planalto.

Souza Faria partiu de Laguna com seu piloto José Inácio e uma tropa composta de índios, brancos e escravos, um total de 96 pessoas. Em 11 de fevereiro de 1728, depois de 11 meses de aventura, o militar margeou o leito do rio Araranguá em direção a sua cabeceira, galgou a íngreme encosta e alcançou finalmente as terras conhecidas como Vacarias dos Pinhais, no planalto. Depois de aguardar por seis meses a chegada de reforços – metade de sua tropa havia deserdado –, Souza Faria rumou em direção ao interior do Paraná, terminando sua viagem em São Paulo em 2 de fevereiro de 1730. Estava assim criado o Caminho dos Conventos, primeira ligação entre a província de São Paulo e a bacia do rio da Prata. O curto trecho do caminho que galgou as escarpas de Aparados da Serra foi o elo que faltava para a malha viária do Brasil colonial estar completa e poder abastecer de gado, cavalos e muares as minas de Goiás e de Minas Gerais.

Ao longo dos anos seguintes, porém, a trilha extenuante aberta por Souza Faria seria várias vezes revisitada. Um novo traçado desviava de Aparados da Serra e ganhava o planalto mais ao sul, onde as serras são menos íngremes. Dali partia dos campos de Viamão, cruzava Vacarias dos Pinhais rumo a Lages para então retomar o trilho original. Essa rota, o famoso Caminho de Viamão, consolidou-se, tornando-se a principal via terrestre do sul do país.

Vestígios das sesmarias, taipas de pedras eram erguidas com as rochas espalhadas nos campos e serviam para dividir as propriedades. Foto Luis Veiga - National Geographic Brasil - Ed. Dez 2012

Com o tempo, outros caminhos foram sendo abertos nas encostas de Aparados. Por eles desciam tropas de mulas carregadas de charque, couro, sebo, queijo, milho e pinhão; as mesmas subiam de volta com os cargueiros abarrotados de sal, açúcar mascavo, café, arroz, cachaça, farinha de mandioca, querosene e armas. O comércio em lombo de mula intensificou-se no século seguinte. Fortunas foram amealhadas por tropeiros, que desafiavam os perigos das serras enfrentando ataques de bugres, salteadores e animais selvagens. Até a década de 1950, o vaivém de tropeiros perdurou como única forma de abastecimento e de contato das populações isoladas de Aparados da Serra com o resto do país.

Laurindo Claro da Rosa, o tio Lauro, como é chamado por ali, hoje com 77 anos, passou a maior parte da vida tropeando em um trecho conhecido como serra da Veneza. Lembra-se, com detalhes, da primeira vez em que cruzou as escarpas, quando tinha 11 anos, e desceu a pé tocando uma tropa de 80 porcos. Naquela época, criavam-se porcos soltos no planalto para que ganhassem peso durante a temporada do pinhão. Quando a semente da araucária escasseava, os animais eram preparados para viagem serra abaixo. O método era cruel: Lauro costurava os olhos dos porcos e depois banhava os pontos com creolina para desinfetar. Cegos, os suínos tornavam-se manuseáveis, fáceis de serem conduzidos, pois se guiavam apenas pelos ruídos da tropa.

Verino Barbosa desossa um porco enquanto sua mulher prepara a carne para fazer salame. No tacho, a banha é apurada, e o pernil á esquerda será assado para o jantar depois de um dia de intenso trabalho. Foto Luis Veiga - National Geographic Brasil - Ed. Dez 2012

Susto na serra Lauro só experimentou um. Foi no verão de 1974, quando desceu com um cargueiro para fazer rancho em uma venda. Ao retornar no dia seguinte, acabou sendo surpreendido por uma chuva pesada bem no meio da subida. Lauro não se intimidou e seguiu. Logo, porém, uma enxurrada o obrigou a procurar abrigo em uma encosta, onde permaneceu ilhado por cinco dias. Molhado e enfraquecido, lançou a sorte em um último ato: amarrou o braço direito no cabresto de sua mula e empurrou-a para dentro d’água. O animal, assustado, venceu a corredeira e alcançou a outra margem, trazendo Lauro de arrasto. O tropeiro chegou ao planalto, e apenas dois dias depois ele e os vizinhos tomaram conhecimento de que o dilúvio que se abateu sobre a região havia feito desaparecer por completo o arraial no pé da serra.

Na década de 1950, um novo ciclo econômico abriu-se na região de Aparados: a exploração da madeira de araucária. Apenas nos arredores de Bom Jardim da Serra chegaram a existir 50 arraiais de serrarias. “As madeireiras compravam apenas toras do pinheiro com mais de 60 centímetros de diâmetro”, diz Antônio Pereira, de 71 anos, ex-tropeiro. “Não era raro abaterem araucárias cujo tronco chegava a 1,80 metro de diâmetro.” As toras eram serradas em pranchas, as quais desciam a serra em um sistema de cabos aéreos para então serem despachadas para o porto de Laguna, de onde eram embarcadas para Porto Alegre, Buenos Aires, Santos e Europa.

No fim dos anos 1970, as madeireiras rumaram para a Amazônia. A região de Bom Jardim da Serra voltou à pecuária, vocação natural que nunca foi totalmente abandonada. Mesmo destino não teve Cambará do Sul, porém. Há 70 anos a cidade é sede de uma indústria de celulose que, durante décadas, usou apenas a araucária como matéria-prima para sua produção de papel – agora substituída pelo Pinus elliottii. Nunca houve preocupação em replantar as antigas florestas de araucária, árvore-símbolo não apenas da serra Geral mas de toda a vegetação do sul do Brasil.

As poucas árvores vergam com o cortante vento pampeano que açoita o planalto na borda dos paredões - mas não impede cavalgada mesmo nos dias mais frios de inverno. Foto Luis Veiga - National Geographic Brasil - Ed. Dez 2012
A florestas de araucária diminuíram, e agora matas de pínus cobrem parte do município de Cambará do Sul para fabricação de celulose. Caminhões trabalham noite e dia para recolher as toras cortadas. Foto Luis Veiga - National Geographic Brasil - Ed. Dez 2012

Mesmo com a mudança de atividade econômica, odisseias para subir e descer as serras não deixaram de acontecer. As escarpas temíveis, às vezes emolduradas pela espessa neblina, seguiram povoando a imaginação dos viajantes, como nos tempos dos desbravadores. Lendas de tesouros enterrados em grotas por missionários jesuítas que subiam pelo rio Pelotas são até hoje comuns nas rodas de chimarrão, assim como os causos que relatam ataques, escaramuças e atrocidades de brancos contra os índios e vice-versa. A prática do montanhismo na região ganhou força com a criação do Parque Nacional de Aparados da Serra, um dos primeiros do país, em 1959. Naquele ano, Ido Ernesto Günther guiou um grupo de escoteiros que realizou a pioneira travessia do cânion Itaimbezinho. Sem saber, inaugurou mais um ciclo de aventuras em Aparados da Serra.

Em 1976, eu e mais dois colegas realizamos a primeira descida do cânion Fortaleza. Munidos apenas com uma corda de sisal de 20 metros, partimos a pé da localidade de Azulega, no Rio Grande do Sul, e alcançamos a borda do Fortaleza no terceiro dia. Optamos por descer a fenda por seu vértice, conscientes de que se tratava de uma rota sem possibilidade de retorno. Na medida em que avançávamos pelo terreno inclinado e cheio de armadilhas naturais, aumentava a incerteza da conquista. A angústia aos poucos deu lugar a um pesadelo. Já sem mantimentos, abandonamos as mochilas e partimos em uma corrida contra o tempo. Ao fim do sexto dia, famintos, trôpegos e esfolados, chegamos à localidade de Serra da Pedra, onde fomos recebidos, incrédulos, por boa parte da população. Jovem, recuperei-me logo do susto, mas jamais me esqueci da aterradora sensação de claustrofobia diante do isolamento no meio do extenso e estreito corredor de paredes de 700 metros de altura.

Tive a chance ainda de cruzar por duas ocasiões o Itaimbezinho. Como as travessias dos cânions começaram a registrar novos acidentes, e até mesmo mortes, estão proibidas por completo pelos administradores do parque nacional. Mas nunca deixei de retornar a Aparados, agora apenas a cavalo, no planalto, sempre na companhia de algum amigo vaqueano, sabedor dos segredos dos caminhos e, acima de tudo, da viração.

Um comentário:

  1. Os Aparados são de uma incrível beleza! Por lá vaguei algumas vezes nos meus trabalhos de Geologia. São campinas cortadas por sangas e arroios de águas cristalinas que acabam se despencando pelos paredões dos cânions. Na Primavera vi moitas de petúnias e verbenas formando manchas coloridas sobre a campina nas margens da estrada de Cambará. Também diversas outras flores, amarelas, brancas e roxas vão salpicando os prados. Fiquei admirado de não encontrar fotografias dessas flores no artigo acima e nem nos sites que pesquisei. Quando lá estive pela última vez em setembro de 1994 fotografei as flores, porém perdi os filmes na viagem de volta ao Rio de Janeiro. Trouxe mudas das verbenas vermelhas que plantei no meu jardim em Petrópolis, mas infelizmente depois de uns três anos morreram.


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